sexta-feira, novembro 10, 2017

Os gays soviéticos da OGPU e do Exército Vermelho (+18)

Na década de 1930 na União Soviética foram julgadas e condenadas mais de 3,7 milhões de pessoas — «inimigos do povo», «contra-revolucionários», «sabotadores», gays. Em 1933, no “caso de Leninegrado” foram detidas 175 pessoas, acusadas de homossexualidade masculina — militares, médicos, milicianos, funcionários da OGPU (a polícia política soviética que deu origem ao NKVD-KGB).
Participantes do casamento masculino encenado em 15 de janeiro de 1921 em um apartamento
privado em Petrogrado na Rússia Soviética. Foto do marinheiro vermelho Afanasy Shaur
Ao mesmo tempo, uma série de processos contra os gays foram conduzidos pela própria OGPU. A historiadora russa Dra. Olga Horoshilova, especialista em moda e cultura quotidiana da década de 1920, descobriu recentemente uma foto de dois oficiais da OGPU (à julgar pelo seu fardamento). No verso da foto aparecem algumas linhas, indicando que havia uma relação entre os dois homens. A mensagem é datada de maio de 1933. Os nomes destas pessoas (na foto em baixo) são desconhecidos.

Os gays da OGPU
foto @arquivo da Olga Horoshilova
A imagem mostra dois homens jovens – um veste o casaco militar e outro a gabardina de cabedal/couro preto com abas de colarinho, uma camisa, gravata e boné quadricular. Ambos serviram nos órgãos da OGPU de Leninegrado. As suas roupas ilustram perfeitamente as vestes típicas da OGPU da segunda metade da década de 1920. Na parte de trás da foto há um texto com data e assinatura.

A mensagem está escrita com uma caligrafia elegante, o texto em forma concisa e lacónica conta a história do amor e do sofrimento pela incapacidade de deixar a sua esposa e ficar com o parceiro, na companhia de quem o autor do texto aparece na foto:
foto @arquivo da Olga Horoshilova
«...escrever sobre amor? Você me conhece... Acredite que você substitui tudo para mim, exceto a minha esposa. Não poderá haver retorno ao passado, porque seria demasiadamente reles em relação à si. Viveremos a vida, espero, tão próximos, como nessa foto. Maio de [19]33. Nikolay».

A mensagem é duplamente rara. Primeiro, tais cartas e fotografias da natureza comprometedora praticamente não sobraram nos arquivos familiares particulares. Os seus proprietários tentavam se livrar deles, especialmente após o início de uma nova onda de repressão e da criminalização da homossexualidade masculina em 1934. Nessa década foi destruída uma enorme camada arquivística, associada à cultura gay soviética. Diários, cartas, memórias, programas e trajes teatrais, fotografias: profissionais e amadoras – tudo isso morreu juntamente com os seus donos, ou se encontra, até hoje, no findo dos arquivos que continuam sendo fechados.

A mensagem também é inusitada porque ambos os jovens serviram na OGPU – na mesma organização que, desde a sua criação, lutou não só contra a dissidência política, mas também com a dissidência emocional. Foi a OGPU que submeteu às represálias cruéis os membros de minorias sexuais na década de 1930, quando foi escrita a mensagem de despedida acima citada.

«Viveremos a vida tão próximos»

O autor da carta é um certo Nikolay, um dos dois jovens na foto. Ele não escreveu o seu apelido/sobrenome, nem mesmo a primeira letra. Sabe-se apenas que vivia em Leninegrado e era é um funcionário da OGPU. E que era um gay. Nikolay era casado, possivelmente num casamento forjado/forçado. Nos anos 1920-30, muitos homossexuais soviéticos arranjavam os casamentos falsos, as esposas confortáveis, para despistar as suspeitas e se parecer com os restantes cidadãos soviéticos, cumpridores da lei. 
Teatro no campo alemão de prisioneiros de guerra. Todos os papéis femininos são representados pelos homens. 1918
foto @arquivo da Olga Horoshilova
A julgar pela carta, os dois mantiveram um relacionamento, apesar do risco da exposição. Mesmo na década de 1920, quando a homossexualidade masculina foi despenalizada na URSS e nem sequer estava mencionada no Código Penal da Rússia Soviética de 1926. No entanto, os homossexuais eram perseguidos, foram inventadas as maneiras e as oportunidades para os humilhar, expor publicamente o seu comportamento “imoral”, os despedir dos seus locais de trabalho, punir e colocar atrás das grades.

Os oficiais da OGPU sabiam dessas perseguições em primeira mão, pois alguns participaram pessoalmente nesse tipo de repressões.

Os salões gay dos “aristocratas”

No decorrer da I Guerra Mundial, em São Petersburgo, surgiu uma certa sociedade ou salão, cujos membros eram homens que se interessavam pela música, poesia e por outros homens. O seu fundador era Mikhail Bychkov. Antes da revolução de fevereiro de 1917, ele servia no Ministério da Educação e, até 1917, ascendeu ao posto do conselheiro colegiado. Era um excelente músico, mantinha amizades com artistas, organizava no seu apartamento as segundas-feiras teatrais e musicais, convidando cantores, poetas, músicos, a sociedade boémia criativa. Após o golpe bolchevique, Bychkov fez uma ótima carreira – ocupando o cargo do chefe do departamento financeiro e contabilístico do Glavles (organismo responsável pelo fornecimento da madeira ao Petrogrado / Leninegrado). Vivendo num apartamento chique e espaçoso, nacionalizado pelo poder bolchevique, ele continuava a manter o seu salão, mas convidava apenas os escolhidos.
Estudantes seniores do Colégio Imperial do Direito (São Petersburgo) em vestuário cigano:
feminino e masculino. Início da década de 1910 | foto @arquivo da Olga Horoshilova
Entre os seus habituais convidados estava o conde Georgiy Avalov, ex-dançarino e na época soviética o modesto controlador da 2ª Tipografia Estatal de Petrogrado. Apareciam lá os atores, dançarinos, poetas. O seu salão também recebia os jovens “simplórios”, pessoas das classes baixas: na sua maioria militares do exército vermelho e marinheiros da marinha vermelha, considerados pelos aristocratas como algo grosseiros, mas também de gostos artísticos. Eles chamavam o dono do apartamento de “Mamasinha” – devido a sua diligência, hospitalidade e cuidados prestados aos jovens.

Os «simplórios» do Leninegrado

Nikolay e seu parceiro não eram os únicos gays que serviram nos órgãos soviéticos de segurança do estado. Os representantes de minorias sexuais serviram na OGPU, na polícia, no exército e na marinha vermelha [principalmente na frota do Mar Báltico], nos bombeiros, nas unidades médicas militares.
Os «simplórios» do Leninegrado, década de 1920
foto @arquivo da Olga Horoshilova
Existia uma curiosa característica da cidade de Leninegrado. A maioria dos homossexuais masculinos da classe média e média baixa – pessoal do exército, da marinha, policiais, membros da OGPU – faziam parte da comunidade gay chamada “simples” ou “paysan” (do francês camponês). Este nome se originou no início do século XX entre os “aristocratas”, homossexuais de São Petersburgo de origem nobre ou pertencentes à classe criativa, para quem a origem social não era apenas uma parte do histórico, mas também a passe à sua comunidade – aos encontros literários, musicais e artísticos.

Os gays de origem popular: artesões, soldados e oficiais de baixa patente, lojistas, garçons, operários e todos os outros eram chamados por “aristocratas” de “simples” e a elite gay dificilmente se comunicava com eles. A exceção era feita apenas aos homens especialmente bonitos ou para os artistas, que eram convidados aos salões, para animar o público aristocrático.
Dois artistas russos, um deles no papel feminino, Petrogrado, década de 1920
foto @arquivo da Olga Horoshilova 
Os “simples” também tinham os seus próprios locais de encontro e salões culturais. Um dos mais populares era o salão pertencente ao marinheiro-padeiro da marinha vermelha, grandalhão Ivan Grekov. No seu apartamento eram organizados os encontros chamados de “Às tardes da Fi-Fi”. “Fi-fi” era o pseudónimo cénico do próprio Grekov, um artista imitador, muito famoso no meio gay e entre os agentes do OGPU que observaram e vigiavam os homessexuais.
O marinheiro-padeiro da marinha vermelha Ivan Grekov,
proprietário de um salão gay.
Arquivo Estatal Central de São Petersburgo
Os milicianos, homens do exército e da marinha vermelha, visitavam diversos salões, onde eram organizadas as apresentações musicais e às vezes se “tocava o acordeão”. No entanto, os salões, na realidade eram pequenos quartos de infinitos komunalkas (apartamentos comunais). Os anfitriões os decoraram o melhor que podiam – com todo tipo de lixo estético e político. Por exemplo, as paredes do salão de Ivan Skobelev eram cobertas com recortes de revistas e cartões postais: «ao lado de Repin, Bamboccio, Rubens – o corpo feminino nu. Acima deles – Lenine, Estaline, Molotov, em estreita proximidade com os retratos da antiga imperatriz e cartões pornográficos».

Às vezes, 20 à 30 pessoas estavam abarrotadas nos quartos, o que, é claro, chamava a atenção de vizinhos curiosos. Estes, denunciavam as visitas à milícia e à OGPU. Os agentes também estavam infiltrados nestes salões, produzindo, incansavelmente os seus próprios relatórios. Observaram que os salões são “bordéis de devastação contra-revolucionária extremamente perigosa”, em que “decorre a propaganda antigovernamental e é exercida a influência perniciosa sobre os jovens, trabalhadores e militares”. Os funcionários da OGPU reuniam as denúncias e as colocavam nas pastas especiais – entendendo que o seu tempo virá. E efetivamente, este tempo veio...

«Os bordéis de deboche»

Em junho de 1933 na cidade de Leninegrado começaram as repressões, rusgas e limpezas, contra os homossexuais em geral, e do exército, milícia e armada em particular. Em 1930–1932 os funcionários da OGPU de Leninegrado receberam alguns circulares (incluindo “Sobre o fortalecimento do estudo pessoal de todos os ex-oficiais, académicos do exército czarista, servido no exército vermelho” e “Sobre o fortalecimento dos serviços operacionais aos jovens estudantes e à população”), que exigiam um controlo mais rigoroso sobre a vida da população urbana, em forma de verificação das pessoas suspeitas, para desmascarar as organizações secretas e, obviamente, contra-revolucionárias, monitorar os salões e “bordéis de deboche”, e os seus convidados.
Alexander Michel, membro de uma unidade conjunta de combate da milícia vermelha,
proprietário de um salão gay | Arquivo Estatal Central de São Petersburgo
Em cada reunião, em cada festa barulhenta, os agentes soviéticos viam uma conspiração, a contra-revolução, uma tentativa de criar “células espiãs diretas”. Consideravam homossexualidade masculina como uma expressão especial de dissidência maliciosa que levava à formação de comunidades secretas “por interesses”, cuja tarefa era, no mínimo, deformar moralmente o exército vermelho, a marinha e a polícia e no máximo – organizar um golpe de Estado.

Em maio de 1933, a OGPU emitiu a circular № 72 “Sobre as medidas organizativas e operacionais em conexão com o [sistema] de passaportização”. Uma das tarefas dos funcionários era encontrar e aplicar as medidas repressivas aos suspeitos e “pessoas criminosas, associadas aos grupos anti-sociais”. Isso incluía a comunidade gay de Leninegrado. Começou a vigilância, verificações de documentos e pessoas, em julho-agosto de 1933 se iniciaram as primeiras detenções e prisões.

Em agosto e setembro de 1933, os oficiais da OGPU prenderam “o núcleo dirigente dos salões” – entre eles Khabarovsky e Grekov, organizadores de “matinés” barulhentas. As prisões duraram até outubro-novembro de 1933. No total, no caso dos “gays de Leninegrado” foram presas 175 pessoas, incluindo militares, médicos, policiais e funcionários da OGPU. Eles foram condenadas às sentenças diferentes, na sua maioria às prisões entre 5 à 10 anos de campos de trabalhos forçados. Alguns evitaram a repressão, mas tiveram que deixar a cidade de Leninegrado.

O caso tornou-se a base para a criminalização da homossexualidade masculina na Rússia Soviética e na URSS. Em 17 de dezembro de 1933, o Presídio do Comité Executivo Central da URSS aprovou a resolução “Sobre a responsabilidade criminal pela sodomia”. Em 1 de abril de 1934, o respetivo artigo, sob o número№ 154-a (repressão da sodomia) foi introduzido no Código Penal da Rússia Soviética e retirado do CP russo apenas em 27 de maio de 1993.

O destino do Nikolay, o autor da carta é desconhecido. A sua foto surgiu no mercado vintage recentemente e, portanto, durante muito tempo foi mantida no arquivo pessoal familiar da pessoa à quem Nikolay dirigiu a sua mensagem.

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