segunda-feira, maio 22, 2017

Os factos e os mitos sobre a Crimeia

Facto 1. A história da Crimeia é conhecida pela humanidade tem alguns milénios. A península da Crimeia fez parte do Império Russo durante 134 anos, da União Soviética, durante 33 anos e há 63 anos que pertence à Ucrânia soviética e depois independente.

por: Anatolii Kaval *, Jornal de Notícias, Portugal
Anteriormente, durante séculos, dominaram os citas e os cimérios, existiram colónias gregas, e a Crimeia foi protetorato do Império Romano. Posteriormente, foi conquistada por godos e hunos, e encontrava-se sob o controlo dos povos turcos otomanos e antigos búlgaros. Ao longo da Idade Média, pertenceu ao Império Bizantino e ao Caganato Cazar. Durante cerca de dois séculos, desde meados de século XV até 1783, a Crimeia pertenceu ao Canato de Horda Dourada, formando assim o Canato de Crimeia, que foi vassalo do Império Otomano.

Durante mais de três séculos, a Crimeia estivera inteiramente ligada ao povo tártaro [da Crimeia]. Como se pode verificar, na lista dos pretendentes à península do ponto de vista histórico, a Rússia não se encontra em primeiro lugar. Porém, reflexões históricas, em princípio, não têm importância nenhuma na identificação da pertinência estatal e jurídica da Crimeia.

Em conformidade com o tratado sobre a criação da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) de 08.12.1991, o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a Federação Russa e a Ucrânia de 31.05.1997, o tratado entre a Federação Russa e a Ucrânia sobre a fronteira estatal entre estes os dois países de 28.12.2003, a Rússia considerou e garantiu a soberania e integridade territorial da Ucrânia, incluindo a República Autónoma da Crimeia e a cidade de Sebastopol. Desde o momento da assinatura e ratificação dos tratados mencionados, quaisquer referências à rica história da Crimeia, na argumentação das reclamações territoriais da Rússia, são meros argumentos de especulação.

Facto 2. O caso da transferência da Crimeia da integração da República Soviética Federativa Socialista da Rússia para a integração da República Socialista Soviética da Ucrânia, não é o único caso em que as autoridades soviéticas redistribuíram os territórios entre as repúblicas da União Soviética.

Vale a pena recordar que, no período entre 1919 e 1928, uma parte dos territórios da Ucrânia Soviética foi cessionada à Rússia de “livre vontade de forma pouco voluntária”, nomeadamente no que diz respeito às províncias de Belgorod, Starodub (concelhos do norte da Guberniya – a principal divisão administrativa do Império Russo) de Chernihiv, Taganrog e de Donbass Leste. O argumento fundamental foi o critério nacional e etnográfico, corrigido em certos casos por indícios de tendências económicas. Isto é, a justificação prende-se com o facto de serem terras com prevalência de população não ucraniana do ponto de vista étnico, e que, por essa razão, deveriam ser cedidas à República Soviética Federativa Socialista da Rússia.

Porém, como dizem, o que é permitido ao Júpiter, não é permitido ao touro. Quando, em 1925, surgira a questão de transmissão à Ucrânia dos territórios povoados com ucranianos étnicos, como foi o caso de Slobozhánshchyna do Norte (as partes das guberniyas de Kursk e Voronezh), o centro soviético esquecera o critério étnico e nacional. Nessa altura e mais tarde, foram rejeitados todos os requerimentos das autoridades da Ucrânia Soviética sobre a transferência dos territórios étnicos ucranianos para a República. Havia muitos territórios étnicos ucranianos como parte integrante da República Soviética Federativa Socialista da Rússia. Conforme evidencia o recenseamento de população de 1926, aos territórios étnicos ucranianos pertenceu não só Slobozhánshchyna do Norte, mas também Kuban, Stavropillya e outros terrenos.

Facto 3. Em 1954, os dirigentes soviéticos transferiram a Região da Crimeia da República Soviética Federativa Socialista da Rússia para a República Socialista Soviética da Ucrânia.
De acordo com a versão oficial, a cessão foi dedicada ao aniversário dos 300 anos do Conselho de Pereyaslav (Pereyaslavs'ka Rada – em ucraniano) – a reunião [magna] comum dos cossacos zaporojianos de 1654, na qual foi aprovada a decisão de formar uma aliança com o czarado da Moscóvia. A transferêrencia da Crimeia para a República Socialista Soviética da Ucrânia foi apresentada como símbolo de amizade entre a Ucrânia e a Rússia. Ainda que, apesar das explicações bonitas e românticas da propaganda soviética, a verdade era bem diferente.

A Segunda Guerra Mundial causou na Crimeia uma onda destrutiva, tendo reduzido a metade a sua população, começando com a deportação em massa dos tártaros, em maio de 1944 – o chamado ato de genocídio contra os tártaros da Crimeia, pois mais de 183 milhares de tártaros foram deportados, 46% dos quais faleceram durante o processo da deportação ou durante os seus primeiros anos da vida no exílio. Além disso, houve a expulsão dos arménios, checos, búlgaros e gregos da Crimeia, em junho de 1944, que tornou esta região numa zona despovoada e economicamente arruinada. A constatação desta realidade é facilmente atestada através dos dados estatísticos e da Imprensa periódica da Crimeia no período de 1953-1954.
Naquela altura, a forma mais adequada e eficaz de devolver a vida à região da Crimeia era transferir a península para a Ucrânia, por causa dos laços económicos, culturais e políticos antigos. O que foi feito. Contudo, foi exactamente graças à Ucrânia e aos ucranianos, que a Crimeia se transformou no “sanatório da União Soviética”, várias vezes reclamado em filmes soviéticos.

Apesar dos tempos difíceis do pós-guerra, tendo em conta que a República Socialista Soviética da Ucrânia perdeu cerca de 13 milhões de pessoas, esta ajustou o funcionamento do setor agrícola da Crimeia, construiu infraestruturas e estradas, bem como estabeleceu fornecimentos de diversos bens. A Gerência Ucraniana de Construção Aquática (Ukrvodbud) construiu os reservatórios de água de Simferopol e da Crimeia Velha, o canal da Crimeia do Norte, resolvendo desta maneira um dos maiores e mais mórbidos problemas da Crimeia – o aquático. Além disso, as centrais eléctricas ucranianas abasteceram a Crimeia com energia eléctrica.

Para os menos informados, a Crimeia era “o presente do generoso Khrushchov” à Ucrânia. Para os outros, que tiveram sabedoria e paciência para examinar o assunto, é absolutamente evidente que a Ucrânia pagou por “este presente” com os gastos astronómicos do próprio orçamento dedicados ao abastecimento dos habitantes e renascimento da economia da península devastada.

Facto 4. Existe o mito de que Nikita Khrushchov, o líder soviético daquele tempo, foi o iniciador da cessão da Crimeia à Ucrânia e "transmitiu a penínsuala aos companheiros ucranianos ilegalmente por decisão própria". Este mito é cultivado assiduamente por adeptos da revanche política da União Soviética e por apologistas de uma ideia imperial da Rússia.

Porém, isso não tem nada de comum com a realidade.

Sem excetuar que Khrushchov, como administrador experiente, viu evidentes vantagens na cessão da Crimeia à “tomada” econômica da República Socialista Soviética da Ucrânia, na altura de tomar a decisão política não tinha poder suficiente para decidir sozinho. Apesar de ser eleito secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) em setembro de 1953, depois do “destronamento” de Beriya, em Moscovo continuaram a governar os partidários mais próximos de Estaline: Malenkov, Molotov, Voroshylov, Kaganovych e Bulganin. O verdadeiro poder ficava nas maõs dos “velhos do Kremlin”. Sem o entendimento da necessidade apressada pelos funcionários do partido, a cessão da Crimeia não occorreria.
No que se refere à iniciativa formal, ela procedeu de dirigentes do Conselho Supremo da República Soviética Federativa Socialista da Rússia. Foi justamente este órgão que sancionou a correspondente decisão e apresentou o requerimento ao Conselho Supremo da República Soviética Federativa Socialista da Rússia que, na sua reunião de 19 de fevereiro de 1954, adotou o decreto sobre a “transmissão da província (oblast) da Crimeia do território da República Soviética Federativa Socialista da Rússia para ao território da República Socialista Soviética da Ucrânia”, modificando definitivamente as fronteiras administrativas e territoriais das duas repúblicas. Os documentos referidos foram adotados em plena conformidade com a legislação da União Soviética daquele tempo e formalizados de acordo com as decisões dos órgãos competentes da União.

Isto confirma que quaisquer acusações a Khrushchov de voluntarismo ou abuso de poder na cessão da Crimeia à Ucrânia não têm nenhum fundamento.

Facto 5. Os adeptos das ideias separatistas na Crimeia argumentam muitas vezes a sua posição, dizendo que, no “referendo” de janeiro de 1991, na Crimeia, a maioria dos seus habitantes votou pelo renascimento da Autonomia da Crimeia como um estado independente da URSS.

O Conselho Supremo da RSS da Ucrânia restabeleceu a Autonomia da Crimeia, mas como parte da Ucrânia. Alguns exclamam: “Os habitantes da Crimeia foram enganados!”. Só fica por determinar quem é que os enganou... O Comité Regional do Partido Comunista da Crimeia, dirigido por Mykola Bagrov, ou as autoridades da República Socialista Soviética da Ucrânia? O primeiro, Mykola Bagrov, sem normas de legislação (não houve nenhuma lei sobre a execução dos referendos locais, em princípio) e sem mandato, organizou o questionário, na base do qual proclamou a criação da República Socialista Soviética da Crimeia, enganando assim a população. O outro, preocupou-se com as opiniões das pessoas e concedeu à Crimeia autonomia, enquadrando-a como uma república aliada, segundo as leis nacionais e as normas da legislação internacional.

A votação da população da Crimeia no referendo de 1991 foi significativa. No dia 24 de agosto de 1991, segundo a antiga tradição ucraniana, o Conselho Supremo da Ucrânia proclamou a independência do país. No dia 1 de dezembro de 1991 teve lugar o primeiro referendo nacional ucraniano onde só foi colocada uma questão: “Aceitam o ato da independência da Ucrânia, proclamado pelo Conselho Supremo no dia 24 de agosto de 1991?”. No referendo participaram 84,18% da população ucraniana, dos quais 90,32% votaram “sim”. Também participaram 67,50% da população da Crimeia. Pela independência votaram 54,19% da população da Crimeia. Assim, a povoação da península, juntando-se aos outros ucranianos, apoiou a criação da Ucrânia independente, reconhecendo-se como parte da nação ucraniana.

Facto 6. As mudanças radicais na política russa em relação à Ucrânia independente começaram a aparecer em 1993. Se antes os parlamentos dos dois países abordaram as questões da Crimeia e da frota do mar Negro de forma bastante razoável, desde 1993, a situação mudou. O Parlamento russo (Duma) começou de forma lenta mas a flutuar em direção ao populismo e ao sentimento neoimperial. A 9 de julho de 1993, o Parlamento russo aprovou a resolução “Sobre o estatuto de Sebastopol”, proclamando Sebastopol como uma parte da Rússia e a base principal da frota da Rússia no mar Negro.

Em resposta, em 14 de julho, o Parlamento ucraniano (Verkhovna Rada) aprovou uma resolução em que qualificou as ações da Rússia como uma violação do direito internacional, das obrigações assumidas no âmbito de ONU, OSCE e outras organizações internacionais, assim como de uma série de acordos bilaterais. A resolução da Duma foi declarada juridicamente nula. Os EUA e a UE manifestaram o seu apoio à integridade territorial da Ucrânia e declararam que as reivindicações territoriais da Rússia em território ucraniano teriam “consequências terríveis para a estabilidade em toda Europa Oriental”.

É pouco conhecido, mas é verdade: o Conselho de Segurança da ONU teve um papel importante na solução da crise. A diplomacia ucraniana enviou um apelo urgente ao Conselho de Segurança da ONU, que foi discutido na reunião de 21 de julho de 1993. Naquela altura, todos os membros do Conselho, incluindo a Rússia, apoiaram a declaração do presidente do Conselho de Segurança. O documento deixou claro que a decisão do Parlamento russo era nula e reafirmou a integridade territorial da Ucrânia nos termos da Carta das Nações Unidas. É de salientar que o presidente russo também condenou as ações do Parlamento russo, classificando-as perante os jornalistas como sendo a sua “vergonha”. Como a história tem mostrado, Boris Ieltsin foi o primeiro e o último presidente da Rússia que tinha vergonha da retórica nacionalista e da política agressiva de seus compatriotas.

Facto 7. Na noite de 26 de fevereiro de 2014, os “homens verdes desconhecidos” invadiram os edifícios do Parlamento e do Governo da República Autónoma da Crimeia. De manhã, no dia 27 de fevereiro, todos os meios de comunicação mundiais mostraram imagens dos deputados da Verkhovna Rada da Crimeia sob os canos de metralhadoras numa reunião extraordinária para escolher o criminoso Sergei Aksionov como novo “primeiro-ministro” e declarar um “referendo” sobre a adesão à Rússia. Em seguida, houve as declarações do presidente russo, Vladimir Putin, sobre os “grupos de autodefesa da Crimeia” e “uniforme militar comprado em lojas de Voientorg” [Comércio Militar], sobre a protecção dos interesses dos falantes da língua russa na Ucrânia, os que de repente se viram sob ameaça.
Três militares russos armados ameaçam o oficial piloto ucraniano Yuliy Mamchur 
Mais tarde apareceu o documentário “Crimeia. A caminho de casa”, que revelou detalhes da operação especial da ocupação militar russa da península. Toda esta campanha informativa baseava-se na data de 22 de fevereiro de 2014, “o dia do derrube do presidente legítimo da Ucrânia, Yanukovych”.

Foi alegado que a Rússia não tinha planeado antecipadamente ocupar, invadir ou apoderar-se de nada e atuava dependendo das circunstâncias “para proteger a povoação da Crimeia dos combatentes de Setor da Direita”.
Medalha russa "Pelo retorno da Crimeia. 20.02.2014-18.03.2014"
Mas há um facto que desmente essa miragem propagandista. Ajudou a faze-lo o próprio Ministério da Defesa da Federação Russa, que estabeleceu uma medalha para condecorar os militantes que participaram na operações de ocupação da península - a medalha “Pelo retorno da Crimeia”. Na parte de trás desta distinção, feita pelo fabricante de condecorações estatais da Rússia “Lienta, Ltd”, em resposta ao pedido urgente do Ministério da Defesa, estão indicados a data de início da operação militar e a data do fim da mesma operação: “20 de fevereiro – 18 de março de 2014”. O seja, a ocupação da Crimeia foi feita não pela autodefesa local, mas pelas tropas regulares russas, e começou não no dia 22 de fevereiro, mas no dia 20. Colocamos este facto, reconhecido pelo Ministério da Defesa da Federação Russa, ao lado dos acontecimentos e vemos que, a operação da ocupação da Crimeia, começou quando Victor Yanukovych era ainda o presidente legítimo da Ucrânia, que apenas no dia seguinte, 21de fevereiro, na presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Polónia e também do representante especial do presidente russo, V. Lukin, assinou com os líderes da Oposição o acordo sobre o ajustamento da crise política. A Rússia já naquela altura começou a sua agressão, violando o estatuto da ONU e as normas do Direito internacional; a ocupação da Crimeia começou quando, em Kyiv, na Praça de Independência e na Rua Instytuska, centenas de manifestantes foram baleados pelas unidades especiais do Ministério do Interior e dos Serviços de Segurança. Tais coincidências não existem – a única explicação lógica da fuga precipitada de V. Yanukovych, juntamente com os membros da família e os seus bens, depois de alcançar o compromisso com a Oposição era a consciência do começo do processo irreversível da invasão russa do território da Ucrânia, e o seu primeiro alvo foi a Crimeia.

A 15 de setembro de 2015, o Parlamento ucraniano – Verkhovna Rada aprovou a lei 685-VIII, que definiu que a data de início da ocupação da Crimeia e de Sebastopol é 20 de fevereiro de 2014, memorizando a traição do ex-presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e as mentiras dos dirigentes da Federação Russa.

Facto 8. Após o Conselho da Europa e a Comissão de Veneza, em fevereiro de 2014, criticarem totalmente o projeto da lei federal constitucional 462741-6 da Federação Russa sobre a alteração da Lei Constitucional Federal sobre “o procedimento de admissão à Federação Russa e a criação na sua estrutura de um novo sujeito na Federação Russa”, mais conhecida como a “lei da anexação”, o instrumento principal de legitimação da ocupação e adesão da Crimeia e Sebastopol à Rússia tornou-se o “referendo geral da Crimeia”.

As autoridades russas tentaram dar às suas ações criminosas uma aparência de legalidade, na esperança de, em circunstâncias favoráveis, poderem atirar a poeira aos olhos da comunidade internacional, para resolverem a questão da Crimeia com vantagem e com perdas mínimas.

A 6 de março de 2014 o Parlamento controlado/manual da Crimeia adoptou uma resolução para organizar o referendo geral violando dessa forma o princípio da integridade territorial da Ucrânia e agindo para além das sus competências. O facto desta violação foi claramente estabelecido pelo Tribunal Constitucional da Ucrânia, que, na sua sentença de 14 de março, apontou que esta decisão contradizia a Constituição da Ucrânia, declarando-a anticonstitucional e obrigando as autoridades da Crimeia a suspender qualquer atividade de preparação para o referendo.

A 15 de março de 2014, o Verkhovna Rada da Ucrânia decidiu dissolver o Parlamento da Republica Autónoma da Crimeia, e, como consequência, este último perdeu qualquer legitimidade. No entanto, totalmente controladas por Moscovo, as autoridades da Crimeia já não podiam voltar atrás: a 16 de março de 2014 ainda se realizou o plebiscito, no qual participaram um total de votantes acima de 80%. Em favor da adesão da Crimeia à Rússia votaram supostamente 96,77% dos votantes, em Sebastopol 95,6%. Estes dados deixaram números astronómicos da “vontade do povo” na consciência dos sociólogos (de acordo com fontes independentes, a participação não excedia mais de 30% dos habitantes da Crimeia), e a explicação das condições e consequências – à consciência dos cientistas políticos, damos três razões da sua nulidade jurídica. O “referendo geral na Crimeia” era ilegítimo e não poderia gerir as consequências jurídicas, porque:

– violou grosseiramente a Constituição da Ucrânia, a Constituição da República Autónoma da Crimeia, Lei da Ucrânia “Sobre Verkhovna Rada da República Autónoma da Crimeia” e as disposições de outras leis e regulamentos;

– contradiz as normas e os princípios básicos do Direito internacional, que são exibidas no Estatuto da ONU, Estatuto do Conselho da Europa, Ata final da Reunião de Segurança e Cooperação na Europa (RSCE) de 1975 e outros documentos finais de RSCE/OSCE, bem como o acordo sobre a fundação da Comunidade dos Estados Independentes de 1991;

– as condições da sua organização não são compatíveis com os princípios democráticos de organização dos referendos, os que sejam elaborados no âmbito de OSCE e do Conselho da Europa e os que são uma parte integrante dos princípios e valores destas organizações internacionais.

Não poderia ser livre a vontade de expressão numa região da Ucrânia que, de facto, estava sob a ocupação das unidades militares das Forças Armadas Russas. A presença de formações militares e paramilitares russas no território da Crimeia, fora dos seus locais de implantação permanente no âmbito do acordo sobre o estatuto e as condições Frota da Rússia do mar Negro na Ucrânia, comprometeu profundamente/radicalmente o processo eleitoral democrático. Outros fatores incomparáveis com a “vontade de expressão livre” da proclamação da Crimeia em “referendo” são:

– ausência de quadro jurídico para organização de referendos locais na legislação da Ucrânia;

– violações significativas identificadas pelos organismos ucranianos e internacionais da proteção de direitos humanos nas esferas da liberdade de expressão e do direito à informação; violação permanente dos direitos dos jornalistas para exercer a sua atividade profissional, cometidas pelas autoridades separatistas da Crimeia;

– demasiado curto prazo para organizar e realizar um referendo. A resolução do Parlamento da Crimeia sobre a organização do referendo foi aprovada no dia 6 de março e o mesmo foi realizado no dia 16 de março de 2014. A exponencial “manifestação da democracia” foi a razão pela qual a data da sua realização foi adiada duas vezes, de 25 de maio para 30 de março e depois de 30 de março para 16 de março;

– o facto de a Verkhovna Rada da Crimeia ter aprovado já no dia 11 de março de 2014 a Declaração sobre Independência da Crimeia e da cidade de Sebastopol – artigo n.º 3 do qual determina diretamente a adesão à Federação Russa, tem prejudicado as consequências jurídicas do referendo, assim como violou a obrigação das autoridades de serem neutras em relação ao seu resultado;

– a ausência entre as opções incluídas na cédula do referendo de uma pergunta sobre o apoio do estatuto da República Autónoma da Crimeia como parte da Ucrânia, que violou diretamente os direitos daquela parte da população, que apoiava a conservação da Crimeia dentro da Ucrânia;

A ilegalidade flagrante do “referendo geral da Crimeia” foi constatada pela Assembleia-Geral de ONU. A 27 de março de 2014, uma centena de estados-membros apoiaram a resolução 68/262 “Integridade territorial da Ucrânia”, que constatou que o referendo realizado na Crimeia e em Sebastopol em 16 de março de 2014, sem ter suporte jurídico, não pode ser a base para quaisquer mudanças nos estatutos desses territórios. Apesar do documento não poder parar a Rússia na sua ação agressiva, ele estabeleceu as bases para políticas de não reconhecimento da anexação da Crimeia pela Rússia, que a comunidade internacional segue até hoje.

Facto 9. Com o fim de justificar suas ações na ocupação e a tentativa de anexação da Crimeia, a Rússia muitas vezes referia-se ao exemplo do Kosovo. Esse precedente era mencionado também pelas autoproclamadas autoridades da Crimeia; a ele referia-se o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa para justificar a legalidade do “referendo geral da Crimeia”; era citado pelo presidente Vladimir Putin durante as suas numerosas entrevistas e apresentações na televisão. Pareceria justo, pois esses casos têm uma série de características comuns. No entanto, uma análise mais detalhada mostra que o Kosovo não pode servir como um decalque para a Crimeia: a situação nessas regiões tem diferenças tão radicais que qualquer comparação é incorreta.

Em primeiro lugar, de acordo com várias fontes, os kosovares albaneses eram submetidos a opressão nacional por parte das autoridades sérvias. Em 1996, o conflito étnico transformou-se em confrontos periódicos entre as tropas do chamado “Exército de Libertação do Kosovo” e a Polícia e Exército jugoslavo. Desde o início de 1998, esses confrontos tornaram-se numa espécie de guerra. Por parte do Exército jugoslavo começou a repressão contra a população civil, que no final de 1998 e início de 1999 atingiu a escala de limpeza étnica. Devido a estas purgas foram assassinados mais de 12.000 kosovares e 500.000 foram forçados a deixar o Kosovo. Durante o período da Ucrânia independente, nenhum grupo étnico na Crimeia esteve sujeito à opressão ou discriminação nacional. Pelo contrário, a Crimeia obteve o status único – de República Autónoma – dentro do estado unitário ucraniano. Todos os grupos étnicos tinham direitos iguais para participação na vida política, económica e cultural da península. Ao início de 2014 as contradições entre os grupos da população na Crimeia eram de natureza política e não étnica. Quaisquer teses da propaganda russa sobre a violência contra moradores da Crimeia pelas autoridades ucranianas não são baseadas em factos e provas – são apenas declarações.

Em segundo lugar, como consequência da operação da NATO contra a Jugoslávia, destinada a acabar com a guerra no Kosovo, a província estava sob controlo da Missão das Nações Unidas (UNMIK), de acordo com a Resolução do Conselho de Segurança da ONU n.° 1244. Somente após nove anos de preservação de status quo e reconhecimento pela comunidade internacional de que todas as tentativas de autodeterminação interna do Kosovo na Sérvia, não só eram ineficazes, mas também inúteis, decidiu-se não interferir no direito dos kosovares à autodeterminação externa. A independência do Kosovo foi proclamada em 2008.

A situação na Crimeia desenvolveu-se de forma bastante diferente. Não houve administração das Nações Unidas, nem as inúmeras rondas de negociações, nem período longo de transição na pendência de uma solução política. O período desde o início das “violações imaginárias dos direitos dos russos na Crimeia” até à “autodeterminação”, durou apenas algumas semanas.

Em terceiro lugar, a declaração de independência do Kosovo foi um ato unilateral. No caso da Crimeia, o significado crucial tinha a intervenção externa. A proclamação da independência da Crimeia foi resultado do uso indevido de força e ameaça de força por parte da Federação Russa contra a Ucrânia. Isto já não é um ato unilateral, mas o ato de agressão militar não provocada, o que não pode criar quaisquer consequências legais. O acto internacionalmente ilícito cometido pela Federação Russa não poderia legalizar a proclamação da “República da Crimeia” e a sua inclusão na Federação Russa.

Em quarto lugar, um fator importante é a vontade dos povos indígenas. Albaneses do Kosovo são o povo indígena da terra, que, de acordo com a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, têm direito à autodeterminação. Ao contrário deles, os russos na Crimeia foram apenas um dos grupos étnicos, que não podem, por seu próprio critério, determinar o estatuto jurídico da península. Na ausência de tal conceito como “Povo da Crimeia”, o único grupo que teria direito à autodeterminação na Crimeia era o povo de tártaros da Crimeia. Mas, como todos sabem, os tártaros da Criméia ignoraram o chamado “referendo geral da Crimeia” e opuseram-se à ocupação russa da península. Hoje, as autoridades de ocupação russa submetem-nos a perseguição e discriminação.

Por fim, a argumentação da Rússia da sua posição sobre a Crimeia utilizando o “precedente de Kosovo” é uma franca blasfémia política. A Rússia perdeu o direito moral para se referir a esta posição jurídica depois do não-reconhecimento da independência do Kosovo. Assim, na declaração sobre as consequências da autoproclamação da independência do Kosovo (Sérvia) do Parlamento russo, aprovada em 18 de fevereiro de 2008, afirma-se claramente que o direito das nações à autodeterminação não pode justificar o reconhecimento da independência do Kosovo. Naquela altura, ambas as câmaras do Parlamento da Federação Russa “consideram impossível o reconhecimento do Kosovo como um estado soberano, a admissão do Kosovo na ONU e outras organizações internacionais comprometidas com os princípios fundamentais do Direito internacional”.

A aplicação da Rússia com respeito à Ucrânia de um método que antes era repetidamente condenado pela mesma e não reconhecido em relação a Sérvia, apenas pode ser considerada como utilização de critérios duplos. Não há outra forma...

Facto 10. O último facto e talvez o mais triste, é que, apesar das altas promessas de transformar a Crimeia ocupada num jardim do Éden, as autoridades de ocupação russas, desde o primeiro dia de ocupação da península, começaram um ataque massivo contra todos os direitos e liberdades fundamentais. O instinto de qualquer império é a destruição incondicional das “ilhas de liberdade” e de “focos de dissidência” nos territórios conquistados. Isso aconteceu com a Crimeia.

De acordo com organizações respeitáveis na esfera dos direitos humanos, tais como a Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Freedom House e muitas outras, em apenas três anos de ocupação a Crimeia voltou três séculos atrás na área dos direitos humanos, primado de direito, tornando-se numa “península de medo e desespero”.

A atmosfera social na península está envenenada de assassinatos não investigados, torturas, desaparecimentos forçados, destruição de garantias processuais básicas e desrespeito do direito a um julgamento justo, proibição de reuniões e manifestações, massacre de jornalistas e meios de comunicação independentes e o encerramento de escolas ucranianas e tártaras. De acordo com o CrimeaSOS – a organização de direitos humanos, apenas no passado – 2016 – na Crimeia houve três desaparecimentos forçados, foram condenados seis réus a penas de 38 anos em acusações fabricadas de envolvimento nas atividades do “Hizb ut-Tahrir”, participação em “Euromaydan” e preparação de atos terroristas; foram abertos 32 novos processos criminais, cada um mais absurdo do que o outro. Em particular Ilmi Umerov, Suleiman Kadyrov e Mykola Semen que defendem o retorno da Crimeia para a Ucrânia, são acusados de “separatismo”, três pessoas mantidas sob custódia aguardam a sentença por participarem na manifestação pró-ucraniana de “26 de fevereiro de 2014”, sete pessoas foram submetidas a exame psiquiátrico forçado.
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Pelos órgãos punitivos do Estado ocupante, foram feitas mais de 177 detenções e realizadas mais de 50 buscas. O apogeu da política de opressão nacional era a proibição pelo Estado invasor, de Medjilis – o organismo representativo dos tártaros da Crimeia. Esta violação era tão flagrante que causou severa condenação de todas as organizações internacionais e da comunidade internacional. O Conselho da Europa anunciou que a política de repressão subiu a um novo nível – repressão em massa contra os tártaros de Crimeia, como uma comunidade.

Hoje, o Governo da Ucrânia não tem controlo sobre a península da Crimeia e não pode fornecer proteção dos direitos humanos e garantir a soberania/o primado do direito. No entanto, o Governo ucraniano continua a sentir-se responsável pelo destino dos seus cidadãos. Atualmente, todos os esforços são dirigidos para parar as ações criminosas das autoridades de ocupação e trazer a Rússia à responsabilidade jurídica internacional como um Estado agressor e ocupante. Hoje, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, estão pendentes cinco processos judiciais interestaduais [impostos] pela Ucrânia contra a Rússia e mais de 3.000 processos individuais abertos com base em reclamações de cidadãos da Ucrânia, devido à agressão russa. Em abril de 2014 e setembro de 2015, a Ucrânia reconheceu a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O Gabinete do Procurador do TPI no seu relatório do ano de 2016 constatou que a Crimeia foi ocupada como resultado do conflito armado internacional entre a Rússia e Ucrânia.

Em setembro de 2016, Ucrânia iniciou um processo de arbitragem contra a Federação Russa nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982, a fim de proteger os seus direitos como um Estado costeiro nas zonas marítimas adjacentes na Crimeia no mar Negro, mar Azov e estreito de Kerch.

A 16 de janeiro de 2017, a Ucrânia apresentou ao Tribunal Internacional de Justiça a demanda judicial contra a Federação Russa para a aplicação das disposições da Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A decisão provisória neste processo foi pronunciada a 19 de abril de 2017.

A Federação Russa deve ser punida pelo seu comportamento ilegal porque a impunidade leva sempre a cometer crimes ainda mais graves.

* Cônsul, Chefe da Missão Ucraniana em Portugal

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