sábado, dezembro 27, 2014

Belarus: resistir à ditadura que resiste *

Hoje publicamos a 3ª e última parte da reportagem do jornalista português João de Almeida Dias sobre a Belarus, a última ditadura da Europa. Desta vez, o jornalista analisa diversos aspetos da resistência pacífica que os belarusos escolhem para contrariar a ditadura. Pois como diz um dos heróis da reportagem: “E o Salazar? Quanto tempo é que ele esteve no poder? (* o título do artigo é da responsabilidade deste blogue).

20 anos volvidos desde o seu início, combater o regime de Lukashenka parece um esforço vão. Que força é essa que trazem nos braços, quando nunca vêem mudança? Porque lutam, se não esperam surpresas?

Em 21 de junho de 2014, Ales Bialiatski (na foto em cima), foi libertado da prisão de alta segurança de Babruisk, no sudeste da Belarus. À data, contava 1052 dias atrás das grades. Bialiatski foi o último preso político a ser libertado na Belarus. Ainda há sete homens atrás de grades por afrontarem o regime de Alexander Lukashenka. É fundador e líder da clandestina Viasna (Primavera), a maior ONG de defesa dos Direitos Humanos do país. É uma das organizações mais ativas na denúncia dos podres do regime de Lukashenka — desde constantes violações dos Direitos Humanos à manipulação de resultados eleitorais. Bialiatski, que não falha a shortlist ao Prémio Nobel da Paz desde 2011, era a cara de tudo isto. Por isso, quando foi interpelado por dois polícias à paisana junto à Praça da Vitória em Minsk em agosto de 2011, sabia bem o que tinha pela frente. A acusação culpou Bialiatski de ter duas contas em seu nome no estrangeiro — uma na Polónia, outra na Lituânia. Bialiatski, que nunca confessou o crime, foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão. O seu apartamento pessoal e o escritório da Viasna foram confiscados pelas autoridades.

Pior do que um homicida

Entre os seus 14 colegas de cela havia cinco homicidas, dois violadores e dois toxicodependentes. É uma prática comum a todos os presos políticos na Belarus. Ao metê-los lado a lado com criminosos deste grau, as autoridades querem fazer-lhes crer que não há diferenças entre um ativista anti-regime e um assassino. No caso de Bialiatski, quiseram que ele acreditasse que era até pior do que os restantes prisioneiros — todos os meses, sem como nem porquê, era alvo de participações por mau comportamento. De todos os reclusos daquela prisão de alto risco, mais de dois mil, era Bialiatski quem encabeçava a lista dos mais perigosos e problemáticos.

A TV e a língua

Michas Yanchuk é jornalista e chefe de redação em Minsk do primeiro canal de televisão independente da Belarus, a Belsat. Fundada a 10 de dezembro de 2007, esta estação conta desde o início com um orçamento de 4,8 milhões de euros anuais financiados pelo governo da Polónia e pela televisão pública polaca. Já o Governo belaruso recusa qualquer pedido de licença da Belsat. Como resultado, além de independentes, também são clandestinos.

Segundo Yantchuk, a Belsat serve para “dar cobertura a todos os assuntos que não são falados na televisão do Estado”. Para ele, há uma distinção clara: “Na Belarus não existe televisão pública. Aliás, na Belarus não existe nada público, como se diz e pensa no resto da Europa. Aqui nada é público. É do Estado.”

Outro ponto de honra da Belsat, além de ser o único canal de televisão independente da Belarus é ser o único cuja transmissão é exclusivamente em… belaruso. De resto, a televisão do Estado e a maior parte das rádios e jornais são em russo. Não foi por acaso, mas antes por decreto. Em 1959, o então 1º Secretário do PC da União Soviética, Nikita Krustchov, deixou bem claro a sua visão num discurso em Minsk: “Quanto mais cedo falarmos todos russo, mais depressa conseguiremos construir o comunismo.” Um ano depois, 87% dos livros publicados na Belarus ainda eram escritos em belaruso. Em 1980, o número colapsou para 12%. Em 2011, vinte anos depois do fim da União Soviética, o número era 10%.

Alucinações no Império Russo-Chinês

Minsk é uma cidade entre tantas outras na região noroeste do Império Russo-Chinês, uma enorme potência mundial que sempre existiu e sempre existirá. A vida é um processo mecânico e maquinal, onde o trabalho é feito em prol do bem comum, mesmo que aqueles que produzem em seu nome não se apercebam da sua concretização. Em todo este território bi-continental a comunicação é feita numa mistura de duas línguas antigas e arcaicas, o russo e o chinês. Não se sabe da existência de outros idiomas neste planeta. Não há surpresas, nem imprevistos.

«MOVA墨瓦», o mais recente livro do autor belaruso Viktor Martinovich

Mova: quo vadis?

Segundo a IISEPS, a principal agência de estudos de opinião independente e de referência em Belarus, menos de 5% de pessoas fala apenas belaruso no seu quotidiano. Quanto ao russo, o número ultrapassa os 60%. No meio, estão pessoas que alternam entre as duas línguas ou que então as misturam. Nesses casos, o russo tem por hábito prevalecer.

No entanto no centro de exposições da Ў Gallery, a aula, conhecida como Mova na Nova (A Língua Novamente), começa às 19h00 e prolonga-se durante três horas. Ao longo desse tempo, os formadores tentam atingir um equilíbrio — todas as lições têm ensino de gramática e vocabulário e discursos de figuras públicas que fazem questão de falar naquela que consideram ser a verdadeira língua nacional. No final, há sempre um concerto. As músicas são cantadas em belaruso.

Alesia Litvinouskaja, linguista de 44 anos, é uma das fundadoras deste projeto que começou em janeiro deste ano. “Quando começámos pensávamos que só os nossos amigos e familiares é que vinham. Mas passado pouco tempo, posso dizer que não conheço 90% dos nossos alunos.” A participação inesperada, explica, é a consequência de uma necessidade de introspeção nacional. “Existe um grande problema de identidade no nosso país. A maior parte das pessoas só sabe aquilo que não são: estão certos de que não são russos. Mas, por outro lado, não sabem o que são ao certo. Afinal de contas, o que é ser bielorrusso?” A pergunta é retórica, mas a língua pode ser um bom início de resposta.

Slava, engenheiro de 65 anos, é um dos alunos mais assíduos do curso. Nascido e criado numa aldeia, lembra-se de como chegou a ser humilhado quando assentou malas em Minsk aos 18 anos, pronto a estudar na universidade. “Eu cheguei cá e falava com toda a gente em belaruso. Mas não dava: falar belaruso era uma grande vergonha. Na altura não tive outra opção e rendi-me ao russo.” Falar a mesma língua do que Moscovo era uma chave para o sucesso. Como resultado, Slava esqueceu-se da sua própria língua. Só a falava nas viagens esporádicas à sua aldeia e, quando o fazia, trocava géneros, errava tempos verbais e esquecia vocabulário. A vergonha agora era outra. Auto-imposta. “Fiquei triste com isto, é como se tivesse perdido o meu passado.” Agora, com a ajuda das aulas de belaruso, aonde vai sempre acompanhado da mulher, já domina quase por completo o seu idioma de berço. “Agora até está na moda, veja bem!”, exclama, sem esconder o espanto.

A lista negra e a catarse fora de fronteiras

Em 2004, Liavon Volski, músico de 49 anos e pioneiro do rock bielorrusso e a sua banda de então, os NRM (sigla que significa literalmente a Nova República dos Sonhos), foram convidados para tocar num pequeno festival em Minsk que foi marcado para assinalar (pela negativa) o décimo aniversário da primeira eleição de Lukashenka. Os concertos ocorreram de forma pacífica e ficaram marcados como um dia de protesto contra um político que já nesses anos não parecia querer ficar apenas uma década no poder. Mas, no dia seguinte, os proprietários e gerentes de todos os bares, pavilhões e salas de espetáculos do país receberam uma lista com bandas que estavam proibidas de actuar em público. Estavam lá todas as bandas daquele festival.

Anna Volskaya, manager e mulher de Volski, conseguiu resolver o problema. “Achei que a lista negra já estava a fazer demasiados estragos e sentei-me para ver se arranjava alguma solução. Então pus-me a olhar para o mapa e vi que Vilnius [na Lituânia] é a capital europeia mais próxima. São só 170 quilómetros. Liguei logo para o embaixador lituano em Minsk, porque somos próximos. Perguntei-lhe: ‘E se nós passássemos a fazer concertos na Lituânia?’”

A receita ideal foi encontrada. A embaixada propôs ajudar os belarusos que tivessem um bilhete para um concerto do Liavon Volski na Lituânia a título grátis. Mais: os 60 euros que são por norma cobrados a cada bielorrusso que queira entrar no espaço Schengen seriam perdoados.

Não são concertos, são autênticos momentos de catarse. Como se, por momentos, a ditadura deixasse de existir. Um dos pontos altos de cada espetáculo é quando soam os primeiros acordes da música “Tri tcharapaqui” (“Três tartarugas”). A letra e a melodia são de Volski, que escreveu a música em 2000, quando ainda era vocalista dos NRM. Esta canção é daquelas cuja letra está na ponta da língua de vários gerações na Belarus, quase como se fosse património nacional. Em Minsk, é difícil encontrar quem não a conheça.
***

Lukashenka é Presidente da Belarus há 20 anos. Poucos arriscam adivinhar quantos anos ainda tem pela frente. Para aqueles que dedicam a vida a combatê-lo da maneira que melhor podem e conseguem, o pessimismo é a regra. Não haverá surpresas.

Quando por fim acaba de falar com o Observador na cozinha da Viasna, Bialiatski levanta-se e dedica-se a lavar as chávenas para chá que foram usadas durante a conversa. Debruçado sobre o lava-loiças, sem se virar para trás, inverte os papéis e lança uma pergunta-nos: “E o Salazar? Quanto tempo é que ele esteve no poder?”

“36 anos”, respondemos-lhe.

“Vamos ver como é por aqui”, responde, com a voz abafada pela água do lava-loiças, como quem não espera surpresas.

Ler o texto integral, 3ª parte: “Enquanto resistem, não esperam surpresas”:
http://observador.pt/especiais/enquanto-resistem-nao-esperam-surpresas

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