terça-feira, novembro 29, 2011

O meu comunismo familiar

O comunismo que chegou à Ucrânia nos anos 1920 trazido pelas baionetas do exército vermelho, atingiu os meus trisavôs em cheio. O descendente da pequena nobreza polaca, o trisavô perdeu quase todos os seus bens que foram lhe confiscadas em nome do “futuro brilhante” de toda a Humanidade... 

A sua casa agradou a direcção do recém – criado kolkhoze, que lá se instalou, ficando na posse dos bens que eles tinham em casa: mobílias, utensílios, roupas, coisas que as pessoas adquirem durante as suas vidas. Os trisavôs receberam a generosa permissão de ficarem com a roupa que traziam no corpo, além de pudessem manter o violino (o trisavô tocava as polcas nos casamentos). E ficaram ainda com a máquina que expremia óleo, a partir das sementes do girassol. Desta maneira, até a sua morte, os trisavôs tiveram um pequeno meio de sustento que lhes permitia sobreviver com o mínimo da dignidade. 

Incrivelmente benevolentes, as novas autoridades até deixaram os trisavôs a viver no seu próprio estábulo. Os seus animais: vaca, cavalo (o trisavô possuía pequena carroça que usava para se deslocar até a cidade mais próxima), porcos, também abalaram rumo ao socialismo científico, colocados nos estábulos kolkhozianos. Onde em breve muitos destes animais morreram, pois novas autoridades proibiam aos antigos donos de cuidarem dos seus bichos e não designaram absolutamente ninguém para trata-lo. 

Por fim o kolkhoze mandou abater todas as arvores de um grande pomar, formado pelas macieiras e pereiras, que também pertencia aos meus trisavôs. As arvores “burguesas” deveriam dar lugar às culturas mais úteis aos proletários e camponeses. Como resultado, este novo campo nunca foi cultivado e se tornou um terreno baldio, cheio de ervas daninhas e arbustos inúteis...  

Apesar de tudo isso, o filho do meu trisavô, meu bisavô, recebeu o comunismo de braços abertos. Doutrinado, provavelmente, durante o seu serviço na marinha czarista, ele voltou a Ucrânia no fim da I G. M., aderindo às rédeas do bolchevismo. A lenda familiar reza que bisavô servia nas fileiras da maquina repressiva, embora não se sabe ao certo nas quais: Tcheka?, Chon?, GPU? Mesma lenda conta que uma vez no Outono, os homens do chefe insurgente ucraniano Zeleniy (Danylo Terpylo) vieram a procura do bisavô e dos seus. Ele não estava em casa e a bisavó teve que se esconder às pressas dentro da meda de feno. Os intrusos picaram a meda com as baionetas, uma deles perfurou a xaile da bisavó. Seja por causa do susto extremo, seja porquê ficou constipada, ela adoeceu e morreu de seguida. 
O chefe Zeleniy (sentado) com os seus homens
Nas vésperas do Holodomor, a sua filha, a minha avó, foi levada para a cidade pelo seu irmão mais velho, que a colocou a estudar na escola técnica e ensinou a falar russo. Ninguém da minha família directa faleceu em consequências do Holodomor, os protegeu a proximidade com Belarus (onde as pessoas iam para trocar os alimentos) e o facto de viverem em um canto bastante esquecido da Ucrânia.

O irmão mais velho de um outro bisavô meu, funciobário do NKVD, foi dado como desaparecido em combate na frente da batalha, provavelmente na Ucrânia Ocidental, durante a I G.M. Em vez de ficar quieto e calado (possuir os familiares no estrangeiro na União Soviética era a maneira mais curta de perder o emprego e acabar no GULAG), ele tentou o localizar através da Cruz Vermelha, imaginem, internacional. Quando o seu serviço soube do sucedido, o bisavô foi imediatamente despedido e só não foi preso porque Alemanha nazi atacou URSS; assim ele foi imediatamente mobilizado para o exército como soldado raso. O bisavô desapareceu em combate (na realidade morreu) nos primeiros meses da guerra, tombado na defesa do Leninegrado, “o berço da revolução” que Stalin ordenou defender custe o que custar. 

Já o avô, que foi mobilizado para a inteligência do regimento da infantaria soviético em 1943, quando o Exército Vermelho retomou a Ucrânia, terminou a II G. M. em Budapeste. Ele deixou a sua vila em 1932 fugindo do Holodomor, rumando à Kyiv, onde primeiro entrou na Rabfak (Faculdade dos Trabalhadores), depois conseguiu a vaga na Universidade. Holodomor de tal maneira afectou a vida social e académica da sua região natal, Zhytomyr, que durante três anos consecutivos: 1932, 1933 e 1934 na escola secundária dele não foram leccionadas nenhumas aulas. O que criou uma situação inédita, quando a sua turma original começou a 10ª classe, o avô voltou à escola como professor, leccionando aos colegas da turma a física, química, biologia e matemática. Em 1941 ele já não estava na idade de recruta, além disso a condição do professor permitiu que não fosse mobilizado ao exército. 

Apesar da exigência do poder comunista e depois dos nazis de entregar todos os aparelhos de rádio (os nazis simplesmente executavam aqueles que encontravam na sua posse), o avô não entregou o seu. Escutava à noite as notícias de Moscovo e algumas estações de rádio estrangeiras. Foi denunciado e levado pelos nazis para ser enforcado, quando um membro da polícia auxiliar ucraniana interveio em sua defesa. Após a guerra, o avô mostrava o tal ex-polícia (quando se cruzavam na rua) aos seus familiares e dizia: “Vejam, filhos, este é o homem que salvou a minha vida”. 

Nos anos pós – guerra os avôs maternos guardavam cada copeque para pudessem construir a sua própria casa. De noite, a família ia para os bosques próximos, coletar ilegalmente os pequenos troncos para fazerem as ripas; também levavam as folhas, bolotas e agulhas que se misturavam com o barro, tudo para construir as paredes. Nada disso era permitido por Lei, se eles fossem apanhados poderiam ser detidos, multados ou presos. 

A minha própria mãe contava que vivia um drama constante: tudo o que aprendia na escola a ensinava que deveria denunciar os pais às autoridades, pois eles “delapidavam o património socialista”, além disso, o seu pai escutava as rádios estrangeiras, naturalmente anticomunistas. Por outro lado, eram os seus pais, a sua única família no mundo. Algumas vezes ela pensava que iria faze-lo, no fim, o complexo comunista do Pavlik Morozov não funcionou nela. 

Quando eu próprio me tornei pioneiro, aderi ao Clube da Amizade Internacional (KID), o Clube fornecia-nos os endereços das crianças dos países socialistas com quem poderíamos se corresponder em língua russa. Os países como Albânia, China, Jugoslávia e Roménia não constavam na lista. Escrevi para vários endereços, no fim comecei me corresponder com uma menina polaca, gostaria imenso de saber onde vive e o que faz hoje a “minha” Agnieszka... Um dia os meus pais compraram o bonito álbum bilingue (em russo e polaco) sobre a arte sacra da Igreja de Santa Sófia em Kyiv, eu queria o enviar para a minha amiga. Mas nos correios centrais da nossa cidade fomos informados do que este álbum, editado na Ucrânia Soviética, numa editora soviética (portanto próprio para o consumo doméstico), deveria obter a permissão oficial do KGB para poder ser enviado para o estrangeiro, pois se tratava de material ligado à religião. Mesmo para um país socialista irmão... 

Anos mais tarde, já nas vésperas da Perestroica, conheci a jovem senhora, chamaremos ela de Valentina, casada com um membro do PCP, a estudar na nossa cidade alguma ciência útil. Valentina era bela, fresca e deslumbrante, ela dizia com ar de vedeta internacional cansada da fama: “sou bi – cidadã, tenho o passaporte soviético e português” e nós demonstrava o livro do Álvaro Cunhal autografado pelo próprio. Além disso, Valentina, era costureira, creio que usava os modelos da revista “Burda” (uma novidade absoluta na URSS, a primeira edição soviética, naturalmente em russo, só chegou as senhoras em 8 de Março de 1987), e as vendia como roupas de marca ocidentais, que alegadamente, comprava no Berlim Ocidental (os quadros da PCP faziam lá as compras nas férias universitárias) ou mesmo em Portugal, que para nós equivalia aos EUA ou mesmo à Marte, um lugar simplesmente inacessível. 

A Valentina tinha uma vida paralela, seguramente não sancionada nem pelo marido, nem pelo PCP. Ela tinha um amante, rapaz novo, belo e fogoso, creio que boliviano, com quem mantinha uns encontros “calientes” aqui e ali. Por vezes, eles se encontravam no meu apartamento, tudo começava com beijos e abraços e acabava com beijos, abraços e choros recíprocos. Mais tarde soube que Valentina chegou a esconder na sua casa um amigo meu, expulso da Universidade na sequência do processo ordenado pelo KGB. Recentemente encontrei, graças à Internet, o nome do marido da Valentina (que recordo como um sujeito sempre cabisbaixo, triste e desanimado) nas listas distritais (vocês vão se rir), do PSD. Que voltas dá o mundo... 

Estive no centro de Kyiv quando no dia 24 de Agosto de 1991 foi proclamada a Independência da Ucrânia, naquele mesmo dia começaram desmontar o monumento enormíssimo de Lenine (rodeado pelas figuras alegóricas do soldado, marinheiro e operária), que dominava a actual Praça de Independência (Maydan de Kyiv). Durante muitos anos guardei como recordações os bocados do granito e do bronze que faziam parte daquele conjunto monumental. 

Pressuponho que a história do polícia auxiliar poderá servir para algum “camarada cacete” me acusar de “branquear os crimes de nacional socialismo”. Do mesmo jeito os mesmos camaradas classificam qualquer denúncia dos crimes do comunismo como “um ataque contra os comunistas”. O que não pode e nem deve ser confundido. Os crimes do comunismo são reais, massificados e largamente documentados. Mas a responsabilidade pelos crimes é sempre individual. Algum correligionário do Lenine ou do Stalin assinou a ordem executiva, algum carrasco a executou. Mas todos eles possuem os seus nomes próprios e como tal são responsáveis pelos seus próprios actos. 
A capa do ensaio “Porque eu não quero voltar para URSS?”
O escritor ucraniano e político socialista Ivan Bahrianyi, autor do famoso ensaio “Porque eu não quero voltar para URSS?” (1946), dizia: “Os nossos quadros estão no partido (comunista) e em Komsomol (juventude comunista)”. A frase que a maior parte da emigração ucraniana rejeitava revelou-se bastante profética. Como demonstrou a história, os patriotas da Ucrânia se encontravam no partido, em Komsomol e até mesmo no KGB. Apenas entre os delatores e os carrascos não havia patriotas, pois os seus corpos físicos se encontravam na Ucrânia, mas as suas almas, mesmo nos dias de hoje, pertencem às gavetas obscuras dos arquivos moscovitas.

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